Socializo a seguir um interessante texto divulgado pelo blog do Núcleo de Pesquisas em Desenvolvimento Regional do PPGDR da FURB. O texto nos convida a refletir sobre a importância do território em um mercado cada vez mais globalizado e excludente.
O
artigo é de autoria da professora Maria Laura Silveira da USP e o original pode
ser acessado no site: http://www.controversia.com.br/index.php?act=textos&id=10927
Vale a pena acessar também o excelente blog do NPDR no endereço: http://npdr.wordpress.com/2013/03/04/o-territorio-em-pedacos-maria-laura-silveira/
Vale a pena acessar também o excelente blog do NPDR no endereço: http://npdr.wordpress.com/2013/03/04/o-territorio-em-pedacos-maria-laura-silveira/
O território em pedaços:
Para ser compreendido, o
território deve ser considerado em suas divisões jurídico-políticas, heranças
históricas e atuais conteúdos econômicos, financeiros, culturais, fiscais e
normativos, que dão conteúdo a suas regiões. É desse modo que o território pode
ser interpretado como o quadro dinâmico, material e imaterial, da vida social.
A fusão entre as forças do global, do nacional e do local determina a
interdependência entre objetos, normas e ações. Sempre a renovar-se, essa interdependência
atribui um caráter tenso à existência dinâmica do território.
Podemos falar de “território
usado”, sinônimo de “espaço geográfico” (Santos, 1994; 1996; Santos e
Silveira, 2001), que indica a necessidade de indagar sistematicamente sua
constituição. A resposta demanda qualificar e quantificar os elementos, os
atores e seus comportamentos, as heranças do passado e as intencionalidades do
futuro. As empresas, o poder público, os cidadãos e organizações diversas
configuram uma teia de técnicas, normas e ações, que autorizam e limitam
comportamentos. O espaço geográfico encarna os problemas e as soluções do seu
tempo e, por isso, tem um papel ativo e as diferenças regionais são prova
disso. É assim que as regiões e os lugares também podem ser entendidos como
atores.
Desse modo, o território usado
não é uma coisa inerte, um palco onde a vida se dá. É um conjunto indissociável
de sistemas de objetos e sistemas de ações (Santos, 1996) ou, em outras
palavras, a base material mais a vida que a anima. É o território propriamente
dito mais as sucessivas obras humanas e os próprios homens hoje.
O território revela as ações
passadas, já congeladas nos objetos e normas, e as ações presentes, aquelas que
estão a caminho de se realizar, capazes de conferir sentido ao que preexiste.
As bases materiais e imateriais historicamente estabelecidas são apenas
condições. Seu verdadeiro significado advém das ações sobre elas realizadas. O
território usado é, por isso, movimento permanente.
Assim entendido, o território é
objeto de novas perguntas: como, onde, por quem, por quê, para quê o território
é usado. E aí os atores aparecem, em permanente cooperação e conflito, mediados
pelos objetos e revelando diferente poder no uso do território.
Enfrentamos, a cada dia, um duplo
desafio. De um lado, é preciso um esforço para analisar o que existe no seu
movimento – o território usado e sendo usado – e, de outro, um esforço para
pensar o futuro e para produzir as transformações necessárias. Se nossa
preocupação é com a divisão do território, deveríamos lembrar, com Ribeiro
(2004), que há uma regionalização de fato, referida à expressão espacial e que
independe da ação hegemônica do presente, e uma regionalização como ferramenta,
isto é, uma delimitação visando implementar uma ação e, por tanto, objeto do
Estado, das corporações e dos movimentos sociais. A região encarna, segundo a
autora (Ribeiro, 2004), os interesses dos agentes diversos e a influência das
esferas da vida coletiva.
Por isso, quando quisermos
definir qualquer pedaço do território, como por exemplo uma região, ou mesmo,
uma unidade da federação, devemos levar em conta a interdependência e a
inseparabilidade entre a materialidade, que inclui a natureza, e o seu uso, que
inclui a ação humana, isto é, o trabalho e a política. Em outras palavras, é
preciso examinar paralelamente os fixos, aquilo que é imóvel como as estradas,
as ferrovias, os portos, as telecomunicações, as áreas agrícolas, de mineração
ou da indústria, e os fluxos, aquilo que é móvel como os transportes, o
dinheiro, a informação e as ordens.
A análise supõe o entendimento de
como as coisas e as ações se repartem e se relacionam, evitando a escolha
prévia ou antecipada de soluções, sejam estas científicas, sejam estas políticas.
Mas, porque sabemos que a realidade é unitária, a visão de conjunto deve
preceder e acompanhar o exercício da análise e o exercício da política.
Quando nos debruçamos sobre o
período atual, vemos que os territórios nacionais ganham acréscimos de ciência,
tecnologia, informação e dinheiro e, nesse processo, as regiões mudam suas
feições e hierarquias. É a expansão do meio técnico-científico-informacional
que não se faz sem a força ou a fraqueza da soberania política de uma nação.
Concomitantemente observa-se substituição e superposição de divisões
territoriais do trabalho, cujas manifestações mais visíveis são as remodelações
de áreas já ocupadas e a ocupação de áreas “periféricas”. Entretanto, essa
dinâmica é fortemente comandada pela política das grandes empresas, as quais
impõem uma nova repartição do trabalho, assim como novos movimentos. Envolvidas
num processo de criação de valor pela incorporação de objetos e ações modernos,
as regiões especializam-se em atividades exógenas e tornam-se compartimentos
produtivos de um mundo globalizado. Mas esses compartimentos têm vida curta,
são nervosos, pois o grande capital é movediço.
Cada período produz suas forças
de concentração e dispersão, resultado da utilização combinada de condições
técnicas e políticas, que não podem ser confundidas com as de momentos
pretéritos e que redefinem os limites. Hoje, verifica-se a difusão de um
sistema técnico comandado pelas técnicas informacionais que cria uma
concentração e uma dispersão combinadas. De um lado, as atividades modernas
tendem a dispersar-se graças às virtualidades oferecidas nas regiões distantes
dos centros mais cobiçados pelas grandes empresas e, de outro, há uma
concentração das decisões mesmo quando o comando técnico das operações
produtivas possa ser relativamente disperso. O fator de dispersão pede, por
exemplo, a presença de novos profissionais nas cidades médias das áreas mais
desenvolvidas. A vocação de consumo e as rendas dessas classes acabam por
estender as fronteiras do mercado privado e, assim, uma certa ubiquidade das
ofertas “metropolitanas” parece revelar uma indiferenciação regional.
Paralelamente, o fator de concentração aumenta o papel da metrópole no comando
financeiro, obrigando cada ponto do território a vincular-se diretamente com o
centro principal e ignorar os níveis urbanos intermediários. Isso também parece
levar à certa indiferenciação regional.
Concentrado e disperso, esse
alargamento da produção no território nacional não se perfaz sem a cooperação.
Orientada pela sua sofisticação e por complexas equações de lucro, a técnica
contemporânea permite dividir as etapas da produção no planeta, chamando uma
complexa e extensa unificação material e imaterial dos processos. As firmas
hegemônicas buscam influenciar as decisões sobre a construção e usos de novas
infraestruturas que lhes são mais necessárias. Cria-se, desse modo, uma
realidade que o poder público considera como essencial para elaborar suas
políticas e consolidar suas normas. Nessa dinâmica, as grandes corporações, os
grandes bancos, os fundos de investimento, os fundos de pensão e outros agentes
poderosos, de posse dos mais modernos sistemas de circulação de bens, pessoas e
ordens - e com força suficiente para mudar o rumo dos governos e a forma de
pensar de várias camadas sociais -, fazem do planeta o seu território, sem
ficarem presos às escalas nacional e local. Isso se faz com frequência e
velocidade antes nunca vistas. Daí a metáfora da desterritorialização, que
chama a atenção sobre essa aceleração com que os capitais hegemônicos usam os
diversos territórios nacionais, impondo mecanismos de fluidez e lucrando com o
fato de atravessar as fronteiras e com a escolha seletiva dos seus pontos de
ação. Tudo isso se constitui, outrossim, num conteúdo da política das empresas,
dos partidos e dos governos, preocupados com a modernização que esquecem, não
raro, as desigualdades regionais. A esse retrato em movimento denominamos uso
corporativo do território, do qual advem as regionalizações movediças e as
novas hierarquias regionais de um território nacional (Santos e Silveira,
2001). Despontam possibilidades de enriquecimento para algumas classes
regionais ou para novos atores que chegam de fora. Mudam o jogo de poder no
lugar, as cosmovisões e os projetos e, com isso, as condições de inserção do
lugar na política nacional e na economia internacional.
Na expectativa do desenvolvimento
regional e nacional, as políticas convergem para a especialização funcional dos
pedaços do território. Espelho da política das corporações, essa especialização
compromete os recursos fiscais regionais para completar a cooperação. Para a
equação interna da firma tal repartição territorial do trabalho ampliada é mais
rentável, porque aproveita uma combinação favorável dos fatores de produção ao
abrigo das benesses do setor público. Para o conjunto da nação, é mais onerosa,
pois a cooperação é cada vez mais feita socialmente.
Os resultados desse processo
socioespacial são, não raro, desarticulações, ingovernabilidade e uma espécie
de retorno à economia arquipélago, mesmo que agora sobre bases técnicas e
científicas. A fragmentação é também a consequência da falta de coincidência
entre “régio” e região, entre regiões do mandar e regiões do fazer. O princípio
local de organização da vida é crescentemente substituído por um princípio de
organização externo e alheio, o que nos autoriza a falar em verticalidades,
solidariedade organizacional e alienação do território (Santos, 1996). Trata-se
de uma interdependência criada organizacionalmente, isto é, pela tecnociência e
a finança. Existe mais intercâmbio entre lugares e pessoas, porém seus
conteúdos são mais normatizados e menos espontâneos. Há necessidade de mais
organização. Nessa direção, o poder público oferece, a partir dos entes
federativos, as garantias que a equação da firma precisa, como na criação de
municípios estudada por Cataia (2003).
Não se trata de imaginar que a
integração de um território advém da aceitação de uma arquitetura
político-administrativa imutável, mas de compreender que a dinâmica territorial
não depende apenas das formas senão dos seus conteúdos. A busca de mecanismos
capazes de desenvolver uma ancoragem territorial deve estar inserida na
discussão de um projeto nacional, pois a região não pode ser tomada como um
absoluto, visto que sua existência não é autônoma. Essa substituição da
solidariedade orgânica por uma solidariedade organizacional ou, em outras
palavras, a transformação do lugar da vida em compartimentos eficientes de uma
economia internacionalizada está, sob certos aspectos, fracassando. É a
consciência desse processo que desencadeia a “esquizofrenia do território”.
Eventuais novas formas políticas não deveriam reforçar tal processo.
Talvez um caminho para exorcizar
essa tendência seja tomar como ponto de partida e como ponto de chegada, na
análise e na política de Estado, a ideia do território usado por toda a
sociedade nas suas diferentes manifestações regionais, apesar da força
diferente dos agentes. O risco de não fazê-lo é imaginar que o controle de
certos pontos, a existência de uma produção especializada e internacionalizada
numa região, o predomínio das lógicas externas, a consideração de aspectos
particularizados que, certamente, arrastam outros interesses e fazem mais
vulneráveis os territórios, nos farão atingir, mais tarde, o desenvolvimento e
a justiça socioespacial.
É possível que algumas das atuais
formas de representatividade política não revelem os problemas dos lugares na
globalização, que apontam a falta de comando político do seu trabalho e de
condições para a vida das pessoas, problemas que vão além dos municípios e dos
estados. Daí uma certa ingovernabilidade do território.
Mas, nesse contexto, parece
aconselhável não perder de vista a ideia de que uma genuína divisão do
território deveria levar em conta as áreas de identidade, legitimadas pelas
próprias condições de existência que, tal como imaginadas por Milton Santos
(2000), constituíssem uma regionalização do cotidiano, fundamento da emergência
de um “quarto nível político-territorial” para que a “federação globalizada”
seja substituída pela “federação lugarizada” (Santos, 2000). Em outras
palavras, para que o território nacional seja verdadeiramente o espaço de
todos.
…
Maria Laura Silveira é geógrafa,
professora do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP)
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